terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Índia Tainá e o Lobo-Guará

A vida prega peças, pensamos que estamos preparados pra qualquer coisa. Mas quando um lobinho sai da toca bate um sentimento estranho de angustia, tristeza, sei lá...
Só o tempo irá dizer...vai passar...enquanto o tempo passa tem os presentes da vida como esse lindo texto que é sobre lobos, mas principalmente uma história sobre a vida, sobre encontros e despedidas, sobre o caminho, o caminho que todos os seres atravessam... A vida, em busca do seu próprio caminho.
A Índia Tainá e o Lobo-Guará

Desde o princípio a criaturinha não saía do pé de Tainá. Aonde quer que ela fosse, lá estava ela, abanando o rabinho, cheirando tudo e qualquer criatura que passasse em seu caminho. A índia, ao mesmo tempo em que achava graça daquele monte de pelos sempre seguindo seus passos, morria de medo de distraída, tropeçar e cair sobre aquele frágil ser, esmagando-o com seu peso.

A bugre era uma guerreira: dividia seu tempo entre os afazeres da oca, a lida no roçado e os muitos seres viventes que dependiam dela para quase tudo, a começar pelo seu marido que, se por um lado, sempre voltava da floresta com caça e ervas em abundância, por outro, era incapaz, até, de achar suas flechas sem a sua ajuda; depois, havia as cabras que forneciam o leite tão importante para a tribo e que era de sua responsabilidade que estivessem protegidas no cercado e alimentadas; agora, como se não lhe bastasse mais nada, ainda tinha aquele pequeno ser que, antes de ter sido adotado por ela, a adotara, sem que lhe houvesse restado alternativa.

E era um tal de preparar papinha de mandioca com leite, manter os pelos limpos e livre de parasitas, protegê-lo dos animais maiores e dos insetos peçonhentos, esquentá-lo entre suas pernas nas noites mais frias... Enfim, tudo que se esperava de uma mãe e sua cria. Ela reclamava, claro, porque fazia parte, mas ela adorava aquela coisinha que mais parecia um gatinho, quando grunhia pedindo atenção ou reclamando por comida. Mas não, não era um gatinho e nem, começava a desconfiar, um cãozinho...

Pois não se esperaria tal comportamento de um animal que foi domesticado há séculos: o gosto prematuro por sangue, os pelos eriçados e a posição de ataque ao menor sinal de movimento de outro bicho, o espírito mais inquieto à noite, principalmente naquelas de lua cheia... Bom, o que era Tainá não sabia, o que sabia é que cachorro não era.

Como todo filhote, o bicho era curioso e a curiosidade foi, aos poucos, vencendo o receio. Cada saída para explorar o mundo, cada incursão na floresta o levava para mais longe e por mais tempo. O coração de Tainá foi ficando mais e mais apertado: estaria sua cria preparada para os perigos que espreitavam? Saberia ela achar o caminho de volta depois de uma excursão mais aprofundada no interior da mata?

A índia percebia que estava perdendo o controle da situação: cada vez seu bebê demorava mais para responder aos seus angustiados chamados e cada vez voltava com sinais mais estranhos em seu corpo, sinal que locais mais e mais longínquos haviam atraído a atenção do pequeno aventureiro.

Nem adiantava que Tainá pedisse, implorasse, ameaçasse, gritasse, nada segurava sua cria perto de suas pernas, como tanto a incomodava tempos atrás. A guerra se mostrou definitivamente perdida para ela numa noite clara de lua cheia. Do nada, o bicho começou a uivar longamente. Era disso que se tratava, afinal, um lobo. Mas não era um lobo qualquer, era o seu lobo. E se tinha uma coisa que doía no coração da pobre mulher é que o infeliz há tempos já não lhe dirigia nenhum som, exceto uns poucos grunhidos para indicar que estava com fome ou sede, mas para a lua era capaz de uivar por horas.

Poucas semanas depois, o lobo partiu em um de seus passeios pela floresta e não mais retornou. Tainá ficou muito triste, mas, também, resignada. Aquelas fugidas para a floresta, as ausências cada vez mais prolongadas tudo isso haviam ajudado a preparar seu espírito para o desfecho que se avizinhava.

Nossas crias não são nossas crias, são crias da vida. Nem mesmo da mesma espécie elas são. Suas necessidades, não são as nossas necessidades, seus anseios, não são os nossos.

Exceto por um pequeno espaço de tempo em que são dependentes de nós, as crias cedo ou tarde seguirão seu próprio caminho.

Tainá sabia que havia cumprido seu papel da melhor forma possível: ela havia alimentado, aquecido, defendido, consolado, amparado e principalmente, amado seu lobinho. Agora só lhe restava esperar que o melhor de si houvesse passado para seu filhote e que ele cumprisse seu destino.

Às vezes, principalmente nas noites de lua cheia, Tainá ouve um uivo ao longe. Isto basta para trazer um enorme consolo ao seu coração.

(Sérgio Dentes)